Clima de desconfiança dificulta liberação de cargas no Mercosul
Uma tensa cordialidade paira sobre brasileiros e argentinos ligados à operação do maior complexo aduaneiro rodoviário da América Latina, nas cidades fronteiriças de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, e Paso de Los Libres, em Corrientes, na Argentina.Alimentado pelos frequentes desentendimentos comerciais entre Brasília e Buenos Aires e pela rivalidade histórica entre os dois países, o clima de desconfiança mútua atrapalha as negociações e contribui para a manutenção de gargalos burocráticos que dificultam o trânsito de mercadorias entre os principais sócios do Mercosul.
Tentativas de superar os entraves não faltam. Os coordenadores de cada país na Área de Controle Integrado (ACI) - o delegado da Receita Federal do Brasil em Uruguaiana, Jorge Luiz Hergessel, e o oficial da Gendarmería argentina, força militar encarregada da vigilância das fronteiras, Raul Rolando Rivero - fazem reuniões quadrimestrais com representantes dos serviços oficiais e das entidades privadas para aparar arestas. Conforme Hergessel, o objetivo é estabelecer "rotinas mais harmoniosas" dos dois lados. Mas as soluções não são tão simples.
No encontro realizado dia 10 deste mês, que foi acompanhado pelo Valor, cobranças e evasivas se sucediam quando vinham à tona temas como a demora na liberação de caminhões, o descompasso entre os horários de atendimento dos órgãos públicos de cada país e as diferentes normas para o trânsito de cargas perigosas.
A reunião foi realizada no quartel do 7º Regimento da Gendarmería, sob os olhares de soldados armados que, embora prestativos, davam ao local ares pouco compatíveis com a ideia de integração.
A maior queixa dos brasileiros, sobretudo transportadores e despachantes aduaneiros, é contra o atraso das obras que vão permitir o trabalho conjunto dos agentes dos dois países para o desembaraço das exportações à Argentina no Complexo Terminal de Cargas (Cotecar), em Paso de Los Libres.
A integração é prevista pelo Acordo de Recife, de 1994. Desde o fim dos anos 90, órgãos argentinos, como a Administração Nacional de Ingressos Públicos (Afip) - a aduana do país - e o Serviço Nacional de Sanidade Animal (Senasa) já operam no porto seco de Uruguaiana para liberar as cargas destinadas ao Brasil.
Sem a operação integrada, os caminhões que vão para a Argentina - ou atravessam o país rumo ao Chile - param no porto seco de Uruguaiana e no Cotecar. Além desses dois pontos, há um terminal na BR-290, na cabeceira da ponte internacional sobre o rio Uruguai, onde são fiscalizados os veículos que trafegam nos dois sentidos, vazios ou com cargas destinadas a aduanas interiores pelo sistema "porta a porta".
Os controles migratórios dos motoristas são feitos apenas pela Gendarmería no Cotecar, para quem chega à Argentina, e no terminal da BR-290, para quem sai. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Transportadores Internacionais (ABTI), José Carlos Becker, a integração do desembaraço das exportações brasileiras no lado argentino dará mais rapidez ao fluxo de cargas.
Só que a obra é esperada há cerca de dez anos e não há prazo definido para a conclusão. Rivero admite que ela deveria estar pronta em junho ou julho deste ano, mas ninguém espera que isso ocorra antes do início de 2012. A Direção Nacional de Vialidad (DNA) argentina, responsável pelo projeto, não arrisca uma data.
Atualmente, segundo o gerente da Eadi Sul, concessionária do porto de Uruguaiana, Flávio Renato Evaristo, o período médio para liberação dos caminhões que chegam ao local com produtos importados é de 39 horas.
Nas exportações, o tempo é de pouco menos de cinco horas, porque os procedimentos são mais simples e não há recolhimento de impostos, mas nesse caso há a parada adicional no Cotecar. Lá, segundo Rivero, a "maioria" das cargas é despachada em até 24 horas, mas Becker diz que o tempo médio chega a 48 horas. "Um caminhão de R$ 450 mil não pode ficar dias parado na fronteira servindo de armazém", reclama o empresário.
Outro problema é o descasamento entre os horários de funcionamento dos órgãos oficiais do Brasil e da Argentina, diz o presidente do Sindicato dos Despachantes Aduaneiros do Rio Grande do Sul, Lauri Kotz.
A aduana argentina opera das 7h às 19 horas, e a Receita Federal do Brasil, das 8h às 20h. Os fiscais do Ministério da Agricultura brasileiro trabalham das 8h às 12h e das 14h às 18 h e os do Senasa, das 9h às 17h, com meia hora de intervalo. Quem quiser usar os serviços oficiais argentinos fora do horário regular precisa pagar a "taxa de habilitação" -pouco mais de 40 pesos, cerca de R$ 18.
Na opinião do presidente da ABTI, os países parceiros do Mercosul precisam adotar uma política comum de "eliminação de documentos" para reduzir a burocracia e o número de intervenientes no comércio regional, que pode chegar a "mais de 20" dependendo da mercadoria em trânsito, incluindo as aduanas, os serviços de sanidade animal e vegetal, de saúde pública e o Ministério da Defesa. "A integração aduaneira existe só no papel", afirma Becker.
Segundo Rivero, ele e o delegado da Receita Federal do Brasil em Uruguaiana vêm "intensificando" o trabalho em busca de "consensos" para melhorar os procedimentos na fronteira, mas, como são coordenadores locais, têm que seguir as diretrizes dos respectivos governos.
De acordo com Hergessel, uma das melhorias já implementadas é a possibilidade de inspeção conjunta por parte dos fiscais brasileiros e argentinos das cargas que caem no canal vermelho em qualquer das duas aduanas.
Mesmo assim, alguns transportadores cansaram de esperar. Há um ano, depois de seis de operação, Jonas Garay Pinto, dono da JS Transportes, retirou seus dois caminhões da rota Mato Grosso-Chile, devido à "burocracia" e às "filas". Segundo ele, os veículos não levavam menos do que 24 horas para atravessar a fronteira e agora fazem apenas linhas dentro do Brasil.
"Se quisermos preservar nosso trabalho, e que Paso de Los Libres e Uruguaiana cresçam, temos que acelerar as soluções", cobra o delegado da Federação Nacional dos Trabalhadores Caminhoneiros da Argentina, José Alejandro Cetina.