Relembrando o passado
Modelo portuário é desafio para governo. 19/6/2008O rio Itajaí-Açu, palavra indígena cujo significado pode ser rio grande que corre sobre as pedras, divide Itajaí e Navegantes, em Santa Catarina. A construção no local de um porto privativo deflagrou o maior conflito desde a privatização dos terminais de contêineres no país, nos anos 90.
A polêmica refere-se à possibilidade de empresas investirem em terminais privativos, sem licitação, para movimentar carga própria e de terceiros. Uma linha de pensamento considera que, ao fazê-lo, as empresas estariam ferindo a Constituição. O tema conflagrou a classe empresarial, foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) e criou incertezas para futuros investimentos em portos no Brasil.
O conflito regulatório subiu de tom no momento em que o governo prepara decreto que definirá a nova política portuária do país. E coincide com o desenvolvimento de sete projetos de terminais portuários privativos que pretendem movimentar carga própria e de terceiros e cujos investimentos previstos somam US$ 5 bilhões.
Os novos projetos portuários encontram-se em diferentes fases (estudos, construção e operação). Juntos, eles teriam condições de ampliar a capacidade de movimentação de contêineres em 4,8 milhões de unidades por ano, segundo estimativa da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib). O volume é semelhante ao fluxo de contêineres que passará pelos portos no país em 2008, previsto em 4,7 milhões de unidades.
Entre os novos projetos, estão o terminal portuário da Embraport, do grupo Coimex, em Santos, com investimentos de US$ 500 milhões, e o porto Brasil, de Eike Batista, em Peruíbe (SP), orçado em US$ 1,9 bilhão. O primeiro dos projetos a entrar em operação foi o da empresa Portonave, na margem esquerda do rio Itajaí-Açu, em Navegantes, município com cerca de 50 mil habitantes ao Norte de Florianópolis.
A Portonave está na origem do conflito com os terminais de contêineres arrendados à iniciativa privada e que estão reunidos na Associação Brasileira dos Terminais de Contêineres de Uso Público (Abratec). A entidade é a autora da proposta de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF contra atos praticados pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). A medida considera que a Antaq não observou limites constitucionais para permitir a instalação de terminais de uso privativo misto como o da Portonave. Outros projetos foram questionados.
No questionamento ao Supremo, a Portonave é citada como um terminal "ilegítimo" que não teria carga própria que lhe permitisse também movimentar produtos para terceiros, conforme determina a lei. A Portonave, controlada por Triunfo Participações e Investimentos (TPI) e pelo fundo de investimentos Backmoon, com sede no Panamá, rebate o argumento.
"Não temos receio (da ADPF) porque o país precisa de infra-estrutura e a iniciativa privada não pode viver de monopólio", diz Carlo Bottarelli, presidente do conselho de administração da Portonave. Ele refere-se aos 13 terminais da Abratec. O projeto da Portonave, em funcionamento desde outubro, recebeu investimentos de R$ 423,2 milhões.
O decreto com a nova política portuária, que pode resolver o atual conflito, deverá estar pronto até o fim deste mês, disse ao Valor o ministro Pedro Brito, da Secretaria Especial de Portos (SEP). "O decreto terá que redefinir normas de acordo com a lei dos portos", disse Brito. E completou: "O investidor precisa de marco regulatório que defina a regra do jogo." Brito afirma que o conflito em curso se restringe ao segmento de contêineres e que os investimentos portuários continuam a ser realizados. Mas há preocupação no meio empresarial de que a briga comprometa avanços que foram garantidos em lei.
O contencioso atual não foi previsto pela lei dos portos (8.630/93). A lei definiu duas modalidades para exploração de instalações portuárias por empresas privadas: os terminais de uso público, explorados mediante contratos de concessão para prestação de serviços a terceiros, e os terminais de uso privativo, para movimentação de carga própria. Nesta categoria criou-se uma subdivisão com a figura dos terminais de uso privativo misto, que podem movimentar cargas próprias e de terceiros.
Em 2005, a Antaq editou a resolução 517 que define condições para a outorga de autorizações aos terminais de uso privativo misto. A norma prevê que a empresa interessada na autorização do terminal privativo deve provar que a carga própria justifica o investimento. A norma é um dos pontos centrais no conflito que põe, de um lado, a Abratec e, de outro, grandes empresas que têm projetos portuários e companhias estrangeiras de navegação favoráveis à construção de novos terminais de contêineres sem licitação.
Na ADPF ao Supremo, a Abratec pede a concessão de liminar para que não se altere a resolução 517/05 no ponto referente à carga própria. Ela pretende, assim, que o terminal privativo tenha carga própria "suficiente" para garantir o retorno do investimento. Empresas que conseguiram autorizações da Antaq para instalar terminais privativos, como a Portonave, são contrários à norma.
Há quem entenda que a discussão atual, embora não iniba o investidor financeiro que procura boas oportunidades de investimento em infra-estrutura, pode atrasar o desenvolvimento de novos projetos portuários porque os financiadores tendem a fazer uma análise mais cuidadosa. Fontes do setor apostam que, mais cedo ou mais tarde, o conflito será resolvido, enquanto isso, a demanda por movimentação de cargas aumenta e exige investimentos adicionais.
"Quem sofre é o exportador e o importador, que vê os custos aumentarem em função da ineficiência portuária", diz um interlocutor que pediu para não se identificar. Em 2007, as importações de produtos manufaturados, transportados preferencialmente em contêineres, cresceram 24% em volume na comparação com 2006. Os terminais de contêineres arrendados investiram US$ 1 bilhão entre 1995 e 2007. Os recursos permitiram expandir em 130% a movimentação de contêineres no país entre 1997 e 2008. O crescimento médio no período foi de 10,8% ao ano.
Os investimentos foram usados para reconstruir a infra-estrutura herdada do Estado, melhorar a produtividade e reduzir os custos de movimentação de contêineres, mas os clientes querem mais. Nelson Carlini, que representa as empresas de navegação estrangeiras, diz que a ocupação nos terminais de contêineres em operação no setor, de Salvador em direção ao Sul do país, é muita alta, o que reduz as "janelas" de entrada nos portos e aumenta a espera dos navios. Os armadores estrangeiros são favoráveis à criação de novas áreas para contêineres sem licitação. "Como exigir licitação pública em terras privadas fora das áreas organizadas dos portos?", diz Carlini.
Sérgio Salomão, presidente-executivo da Abratec, afirma que os terminais de contêineres ligados à entidade investirão US$ 300 milhões em expansão da capacidade entre 2008 e 2010 para atender o crescimento da demanda. "A manutenção do marco regulatório é fundamental para manter o fluxo de investimentos para os portos", diz Richard Klein, vice-presidente do conselho de administração da Santos Brasil, o principal terminal de contêineres do país, no porto de Santos.
Klein diz que três empresas com terminais de contêineres em operação - Santos Brasil, Wilson, Sons e Log-in - captaram R$ 2,5 bilhões em ofertas públicas para sustentar programas de expansão. Só a Santos Brasil, que movimentou cerca de 850 mil contêineres em 2007, aumentará a capacidade para 2 milhões de unidades por ano em 2015.
Na ADPF proposta ao Supremo, a Abratec argumenta que o objetivo da medida é impedir que os terminais de uso privativo misto se transformem em terminais de uso público não sujeitos as mesmas obrigações e controles do regime público. Para os opositores da Abratec, ao invés de